A Utopia - Núcleo Português da Arte Fantástica teve o seu início dia 1 de Abril de 2008 utopia.npaf@gmail.com
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sábado, 8 de maio de 2010

CONTOS, POESIAS E OUTROS TEXTOS

Àquele amor que nunca o foi

Disse ela.
Sabes o que me apetecia? Poder ouvir-te cantar.
E por causa desse desejo ele buscou todos os sons e trinados melodiosos de cânticos de pássaro que sabia existir, para juntar à sua voz.
Decorou e compôs canções, de amores de verão e de paixões de Outono.
Buscou o doce som do desejo só para poder cantar um ínfimo do que sentia por ela.
Cantou por se sentir vivo, sendo ela a razão da sua existência.
Deu-lhe a provar o sabor das lágrimas de paixão com o doce sabor da sua voz melodiosa, mas muda e queda de silêncio.
Disse ela.
Sabes o que gostava? Que alguém me escrevesse um poema.
E por causa desse desejo ele foi buscar a espuma do mar, o sal na areia branca, o azul das violetas da montanha, os sabores do campo, as cores dos céus.
Tudo para compor versos de amor e paixão, os quais ela julgaria tirados de alguma epopeia grega repleta de actos heróicos cravejados com a sofreguidão do desejo!
Disse ele.
Sabes o que queria?
Poder um dia cantar ao teu ouvido, sussurrar palavras ternas de sentimento puro e até agora, reprimido.
Abraçar esse puro corpo de marfim, acordar com esse sorriso de pó de estrelas e com os toques de encantamento das tuas mãos em meu corpo.
Tudo como o imagino que seja.
Mas tal seria impossível.
Viviam em mundos separados.
Em épocas diferentes.
Ela até poderia não existir.
O que sabia dela, eram apenas palavras que todos os dias encontrava em tiras de papel, debaixo de uma pedra no seu jardim.
Imaginava-a bela, radiosa, graças a breves vislumbres da sua silhueta quando o vento passava.
Via-a sorrindo. Aquele sorriso que o encantava.
Mas distante, muito distante.
Ela também o conhecia simplesmente... assim.
Poderia ser apenas imaginação.
Uma brincadeira de algum conhecido.
Como é que um homem que nem conhecia, de um momento para o outro passou a ser seu intimo e lhe escrevia belas cartas com canções e poemas de amor confesso?
Algo que nunca ninguém o tinha feito?
E se eu procurar, minha bela, uma maneira de te encontrar?
Uma maneira de ficarmos juntos?
Não, não o faças meu querido.
Podes ser apenas ilusão.
E eu, eu temo a desilusão.
Até, quem sabe, eu posso ser uma imagem criada pela tua imaginação e um de nós ficaria perdido no limbo!
Assim o creio.
Estes momentos de tão belos parecem impossíveis de acontecer!
Por isso creio que seja apenas imaginação de um de nós e o outro não exista.
Até já duvido da minha existência como mulher!
Como ser vivo.
E assim ficaram.
Cada um na sua época, cada um no seu tempo.
As cartas começaram a escassear debaixo da pedra mágica.
Como cada um tinha medo de não encontrar o outro, acabaram por nunca se encontrar.
Acabaram por se perder.
Num qualquer limbo!
Até que um dia alguém retirou do jardim a própria pedra!
Deixaram de se comunicar.
Deixaram de existir!
Acreditaram que cada um fosse produto da imaginação.
E ele no seu tempo, na sua época, dezenas de anos depois, ainda parecia que a via, à sua imagem, à sua silhueta.
E em noites de vento revolto, vinha para o jardim, para ver o seu vulto passar.
Mas agora, agora não a via sorrir, mas sim cheia de tristeza, séria.
Com lágrimas no olhar.
Com um olhar perdido, como que perscrutando o horizonte.
E ela, no seu tempo, na sua época, dezenas de anos depois, olhava o horizonte, com a esperança de poder arranjar maneira de tornar a vê-lo... mesmo nunca o tendo visto.
E em noites revoltas vinha para o jardim ouvir o som dos ares.
Que vinha repleto daquela voz que tanto adorava... e nunca tinha ouvido!
O som dos ventos carregando canções e poemas dedicados ao amor.
- Desculpe, viu esta jovem?
- Desculpe, viu esta jovem?
Interpelava toda a multidão que passava, fazendo repetidamente a mesma pergunta.
- Desculpe, viu esta jovem?
Barba por fazer, cabelo desgrenhado, olhos cavados, tristes, fundos, profundos.
Vagueando pelas ruas perguntando vezes sem conta.
- Desculpe, viu esta jovem?
Trazia na mão uma folha de papel, branco, com um retrato a carvão. Um rosto de uma bela jovem.
Desculpe...?
As pessoas olhavam, ignoravam, sorriam, escarnavam...
...viu esta jovem?
- Avó, hoje vi novamente aquele moço. Que pena, Tão jovem, bem parecido, sempre em busca duma garota retratada a carvão. Deve ter sido uma grande paixão, para procurá-la tão ansiosamente!
- Pois é, querida! Há amores na vida que nunca o serão. São esses os mais valiosos. Nunca saberemos se resultariam.
E com a conversa da neta, recordou-se do grande amor que teve em jovem. Todos os dias recebia mensagens em tiras de papel. Encontrava-as sempre debaixo de uma pedra num jardim que ainda hoje existia perto de sua casa.
Engraçado! Já não se recordava dele há bastante tempo. Pena nunca o ter conhecido! Viviam em épocas diferentes, em mundos separados, talvez!
E enquanto saía para ir comprar algo para o jantar, uma lágrima brotou, correndo louca pelos sulcos do tempo marcados na sua face. Por se recordar desse amor que nunca o foi e sempre o iria ser!
Poderiam ter tido uma linda história de amor se tivesse ousado em ser feliz!
Desculpe, viu esta jovem?
Cansado e cheio de fome, seguiu na direcção de sua casa.
Há meses que não recebia notícias dela!
Primeiro passaram a ser escassas. Depois deixou de as ter.
Antes de voltar para o seu refugio, parou naquele local, naquele sitio mágico. Onde houve a pedra e hoje apenas um vazio.
Ouviu o vento sussurrar, olhou para o vazio e puxou o capuz para cima da cabeça.
Antes de ter tempo de se refugiar nos seus pensamentos ainda se apercebeu de uma bela senhora já idosa que passava, em lágrimas.
Se tivesse sido mais ousado encontraria a felicidade. Sabia disso.
A vida é cruel!
Afogada em lágrimas dirigiu-se para aquele local mágico onde recolhia as palavras do amor de sua vida. Tinha jurado que nunca mais lá voltaria, mas a sua neta, com a sua conversa, provocou-lhe saudades. Antes de lá chegar, apercebeu-se de um belo jovem, que lhe parecia alguém que ela conhecera, com a cara coberta de lágrimas, passando envolto em nuvens de tristeza. Continuou o seu caminho.
Para observar o vazio.
A vida é cruel.


("Antologia de Contos Fantásticos")
Paulo Rodrigues

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