A Utopia - Núcleo Português da Arte Fantástica teve o seu início dia 1 de Abril de 2008 utopia.npaf@gmail.com
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quarta-feira, 10 de setembro de 2008

CONTOS, POESIAS E OUTROS TEXTOS


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UTOPIA 1 – O CONHECIDO E O DESCONHECIDO

Como poderá a mente saber se encontrou aquilo a que se chama o imensurável,
o inominável, o mais sublime? Ela não pode conhecer aquilo que não tem
limite, que não se pode conhecer, aquilo que


não pode ser experienciado. Portanto, tudo o que a mente pode fazer é
libertar-se de todos os tipos de sofrimento, ansiedade, e do desejo que
acaba por criar ilusão.


O «eu», com todas as suas imagens, é o centro que prejudica todo o
relacionamento, criando, portanto, conflito. Se a mente não cria uma
correcta relação com os outros, a simples busca da verdade não

tem qualquer significado, porque a vida é relação. A vida é acção no
relacionamento, e se isso não se faz de uma forma profunda, profundamente
compreendida e firme, não se consegue ir longe. Sem

isso, a simples procura torna-se um modo de fugir à realidade do
relacionamento. E enquanto a mente não estiver profundamente enraizada numa
conduta correcta, numa ordem que é virtude,

qualquer procura ou investigação do Real não tem sentido, porque a mente que
não está livre de conflito apenas pode refugiar-se naquilo que ela considera
ser o Real.

Como poderá a mente – que está condicionada, que está tão moldada pelo que a
rodeia, pela cultura em que nascemos – encontrar aquilo que não está
condicionado? Como poderá uma mente que

está sempre em conflito consigo própria encontrar aquilo que nunca está em
conflito? Assim, qualquer procura não tem sentido. O que tem sentido e
significado é tentar saber se a mente se pode

libertar, libertar-se dos medos, das suas mesquinhas lutas egoístas, da
violência, e de tudo o mais. Poderá a mente – a mente de cada um não ficar
livre de tudo isso? Esta é a verdadeira pesquisa. E só

quando a mente se liberta realmente, é capaz, sem qualquer ilusão, de
perguntar se há algo que é absolutamente verdadeiro, intemporal,
imensurável.

É extremamente importante descobrir isso por nós porque temos de ser uma luz
para nós mesmos, não podemos ir buscar essa luz a outra pessoa ou sermos
iluminados por outrem. Temos de descobrir

por nós próprios todo este movimento da vida com toda a sua fealdade,
beleza, prazeres, infelicidades e confusão, e sairmos dessa torrente. E se
realmente descobrimos todo esse movimento, como

espero, então o que é a religião? Todas as religiões organizadas são fruto
do pensamento que constrói uma estrutura, uma viagem à volta de alguém, de
uma ideia ou de uma conclusão. Tudo isso não é

religião. Religião é uma vida que é vivida integralmente, como um todo, não
fragmentada.

Muitas mentes estão em pedaços, fragmentadas, e aquilo que está fragmentado
é corrupto. Assim, o que é a mente, o que é cérebro, que pode funcionar no
mundo, no campo dos conhecimentos, e ao

mesmo tempo viver livre do conhecido? Estes dois aspectos devem estar
juntos, em harmonia. Ao investigarmos esta questão em profundidade,
perguntamos: O que é a meditação? Vamos descobrir

por nós próprios se isso tem qualquer significado. Para isso, temos de pôr
completamente de lado tudo o que tem sido dito sobre meditação. Seremos
capazes de fazer isso? Ou estamos presos numa

rede, numa armadilha das ideias de outras pessoas sobre a meditação? Se
estamos apanhados nisso, apenas nos entretemos a nós próprios, ou tentamos
encontrar a luz de alguém através de algumas

práticas. Quando fazemos essas práticas, estamos a obrigar a mente a
conformar-se a um padrão inventado por outrem.

Não sigam ninguém. Não aceitem o que alguém diz, porque cada um de vós tem
de ser luz para si próprio. Temos de manter-nos completamente por nós
mesmos, porque cada um é o mundo e o

mundo, é cada um de nós; temo de nos libertar das coisas do mundo, o que
significa estarmos livres do «eu», do ego e de todas as suas agressões,
vaidade, insensatez, ambição.

Portanto, o que é meditação? Como vamos descobrir? É óbvio que para vermos
qualquer coisa muito claramente a mente tem de estar silenciosa. Se eu
quiser escutar aquilo que está a ser dito, tenho de

dar atenção a isso, e essa atenção tem a qualidade do silêncio. Para
descobrir não apenas o sentido das palavras, mas ir mais além, tenho de
escutar muito atentamente. Nesse escutar não vou

interpretar o que o outro está dizendo, não vou julgar, não vou avaliar; vou
escutar de facto as palavras e também o que está para além delas, sabendo
que a palavra não é coisa a que ela se refere e que

a descrição não é o que é descrito. Assim, escuto o outro com total atenção.
Nessa atenção não há o «eu» como aquele que escuta, o «eu» que se separa a
si próprio daquele que está a falar, que separa

o «eu» e o «tu». Assim, a mente que é capaz de escutar totalmente aquilo
que está a ser dito e de ir mais além da palavra, tem de dar uma atenção
total. Isto acontece quando olhamos para uma árvore

com grande atenção, ou quando ouvimos música, ou quando se escuta alguém que
nos está a dizer alguma coisa muito urgente, muito séria. Esse estado de
atenção, no qual o «eu» está totalmente

ausente, é meditação. Porque nesse estado não há direcção, não há fronteiras
que o pensamento tenha construído à volta da atenção.

Atenção implica uma mente que não tem nenhum desejo de adquirir, de atingir,
de chegar, ou de vir a ser qualquer coisa. De outro modo, surge o conflito.
Portanto, a atenção é ausência total de

qualquer conflito, é um estado mental em que direcção, vontade, não têm
qualquer lugar. E isso só se dá quando escuto outra pessoa, ou um pássaro,
ou estou a olhar para as montanhas maravilhosas.

Nesse estado de atenção não há divisão entre observador e observado. Quando
há essa divisão, então há conflito

Ora tudo isso é apenas o começo da meditação. E se a mente é realmente séria
na sua pesquisa, esta meditação é necessária porque o modo como vivemos, que
perdeu todo o sentido, passa a ter

significado. A existência surge como um movimento, uma harmonia entre o
conhecido e o desconhecido.

A meditação é o dia-a-dia onde não há controle de qualquer espécie. A nossa
vida é gasta na enorme energia que é dissipada no acto de controlar.
Passamos os nossos dias a controlar: «Tenho de» e

«Não tenho de», «Devo fazer». Reprimir, permitir, refrear, afastar,
apegar-se e desapegar-se, exercitar a vontade para conseguir, para lutar,
para arquitectar - em tudo isto há sempre uma direcção, e

onde há uma direcção, tem de haver controle. Passamos os dias a controlar, e
não sabemos viver completamente livres de controle. Isso exige uma enorme
pesquisa e seriedade para descobrir um

modo de viver em que não haja sombra de controle.

Porque é que controlamos, e, quando controlamos, quem é o controlador? E o
que é que ele está a controlar, isto é, a impedir, a dirigir a toldar, ou a
imitar? Cada um de nós observa em si próprio

desejos contraditórios: querer e não querer, fazer isto e não fazer aquilo,
as oposições da dualidade. Haverá mesmo dualidade? Não falo do oposto
homem/mulher; sombra/luz; mas psicologicamente,

haverá mesmo opostos, ou apenas aquilo que é? O oposto apenas existe quando
não sei o que fazer com aquilo que é. Se eu souber o que fazer com o que é,
se a mente é capaz de lidar com aquilo que

é ir mais além, o oposto não é necessário. Isto é, se formos violentos, como
a maior parte das pessoas, praticar o seu oposto, a não-violência, não tem
sentido, porque há um intervalo de tempo, e

durante esse intervalo estamos a ser violentos. O que tem sentido é
preocuparmo-nos em ultrapassar a violência, e não pensarmos no seu oposto
mas vermo-nos livres dela. Estamos sempre a traduzir

o novo em termos de velho, e consequentemente nunca nos encontramos com o
novo com uma mente fresca. Traduzimos uma nova reacção, um novo sentir, como
sendo violência, porque olhamos

para isso com as ideias, as conclusões, as palavras e os significados do
passado. Portanto, o passado gera o oposto de o que é. Mas se a mente poder
observar o que é sem lhe dar nome, sem categorizá-

lo, sem o enquadrar, sem gastar energia a fugir disso, se a mente for da
paz de olhá-lo sem observar, que é o passado, olhá-lo sem os olhos do passado,
então ficaremos totalmente libertos disso, fazei

isto e vereis.

Já verificaram que em cada um de nós há sempre o observador e o observado?
Há um «eu» a olhar para uma coisa, portanto, há uma divisão entre mim e a
coisa que observo. Olhamos para uma árvore,

e o observador, o passado diz: «É um carvalho.» Quando ele diz: «sou um
carvalho», esse conhecimento é o passado, e o passado é o observador. Assim,
o observador é fisicamente diferente da árvore.

Obviamente que assim é. Mas quando lidamos com factos psicológicos, terá que
o observador é diferente da coisa observada? Quando digo «Sou violento» será
o observador, aquele que diz «Sou

violento» diferente disso a que chama violento? Claro que não. assim, quando
o observador se separa do facto como «observador», ele cria uma qualidade,
um conflito, a que tenta escapar através de

vários meios, não sendo capaz de encarar o facto da violência. Esta questão
tem de ser bem trabalhada por cada um de nós, para que compreendamos o
movimento de divisão que caracteriza o

«observador» e o «observado», o que cria conflito impedindo o relacionamento
directo com o que quer que seja.

Em meditação, a vida é um movimento total, não fragmentado, não dividido em
«eu» e «tu». Nisso não há um «eu» a experienciar. Será que vemos que a mente
é incapaz de vivenciar algo que ela não

conhece? A mente não é capaz de experienciar o imensurável. Podemos dar um
certo significado a esta palavra e dizer: «Vou experienciar o imensurável, a
consciência superior» e tudo o resto, mas

quem é o experienciador? O experienciador é o passado e ele apenas pode
reconhecer a experiência em termos desse passado e, portanto, tudo isso lhe
é já desconhecido. Portanto, na meditação não

há experienciar.

Temos não só de compreender todo este movimento de viver diário, que faz
parte da meditação – e isto sem qualquer controle, para que não haja
conflito, nem direcção -, mas precisamos também de

ter uma vida cheia de energia, activa, completa, criativa. Em meditação, a
mente torna-se totalmente quieta, silenciosa. O silêncio tem espaço tem e a
mente não tem espaço. Está demasiado cheia de

conhecimentos que vamos adquirindo e está eternamente ocupada com elas
própria – com o que temos de fazer ou não fazer, com o que temos de atingir
ou ganhar, com o que os outros pensam de

nós. A mente está repleta de conhecimentos de outras pessoas, repleta de
conclusões, de ideias e de opiniões. Por isso, temos muito pouco espaço nas
nossas mentes. E um dos factores da violência é a

falta de espaço. Temos pouco espaço dentro de nós, e precisamos de ter
espaço. Faz parte da meditação descobrir um espaço não inventado pelo
pensamento, porque quando temos espaço a mente

pode funcionar inteiramente. Um cérebro que está completamente em ordem – em
ordem absoluta e não relativa – não tem qualquer conflito e, portanto, pode
«movimentar-se» no espaço.


O silêncio é de facto uma forma extrema da mais alta ordem. Assim, o
silêncio não é algo que possamos imaginar, que tentemos praticar ou de que
tentemos tomar consciência. No momento em que


temos consciência que estamos em silêncio, já não há silêncio. O silêncio é
a mais alta ordem matemática, e nesse silêncio as outras partes do cérebro
que não têm estado ocupadas, não têm estado em


actividade, tornam-se totalmente activas. O cérebro, quando não está em
conflito, tem um espaço imenso, que não foi criado pelo pensamento como
espaço, mas que é espaço verdadeiro, e esse


espaço não tem fronteiras. E aí o pensamento não tem qualquer lugar. À
medida que vamos falando disto, estamos a empregar o pensamento, usando
palavras que o pensamento utiliza para comunicar,


mas a descrição não é aquilo que é descrito. Assim, a mente e também os
cérebros tornam-se completamente silenciosos e, portanto, ficam em ordem
completa. Onde há ordem. Há imenso espaço.

E o que reside nesse vasto espaço ninguém nos pode contar porque é
absolutamente indescritível. Alguém – não interessa quem – que o descreva ou
tente atingi-lo através da repetição de palavras, e

toda essa insensatez, está a corromper algo que é sagrado.

Isto é meditação. Faz parte da nossa existência diária; não tem algo que se
faça em momentos específicos; isso está lá sempre, pondo em ordem tudo o que
toca. E nisto há grande beleza. Não a beleza que

está nas colinas, nas árvores, nas pinturas, ou na música, porque aquilo é a
própria beleza e, por isso, é amor.


José Leitão - UKKOTTA

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A BOMBA

A velha mouca devora um pastel de nata,
Sorrindo com ambíguo prazer
Perante os suaves sons de uma sonata,
Pois sendo surda, ouve-a sem saber.


Com a mente capto
O mentecapto.
Com olhar apurado detecto
A mosca que passeia pelo tecto.


Mais além, vejo o Matos,
O Matusalém,
Cidadão de idade provecta,
O primeiro avô proveta.


Um pinguim
Atravessa uma rua de Pequim
Confortável, no seu palanquim
Descapotável.


Noutra dimensão, um ser paradoxal
Faz vestidos sem ter pano,
Toca Chopin ao piano
E tem grelinhos no quintal.


Tudo isto me diverte,
Tudo isto me comove
Como uma múmia que ressuscita
E não se move.


Mas aquilo que mais me entristece,
Aquilo que mais me apoquenta,
É a bomba que caiu no meio da multidão
E não rebenta!


Hélio Cunha



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HOJE SONHEI QUE VOAVA


A diferença entre orientar e Oriente,
Os três macacos sempre tão exóticos,
Não ver, não ouvir nem falar...
Aqui sempre houve a expressão equivalente
Que o Diabo seja cego, surdo e mudo,
Não sei para que fomos então navegar?!

A vida como uma antecâmara para a morte,
Como as salas de espera dos aeroportos,
Que estranho, passar toda a vida numa sala de espera,
Aguardando a viagem que será verdadeiramente a primeira,
Talvez a única, talvez a última, a derradeira...
Dos dias nada sei dizer

Os seus corpos, as suas bocas ávidas,
Entre a espada e a parede,
Between the devil and the deep blue sea
As suas línguas sensuais e ondulantes.
Espera por mim, Papagena, please, wait for me.
Eu apenas queria ter o barco branco,
O veleiro dos meus sonhos de criança.

Gaivotas guincham no Guincho.
Nos teus cabelos esvoaçantes, um Secreto Adeus.
Hiroshima, mon Amour, Parsifal, Kundry, Klingsor,
Asteria Rubens, Heniochus Acuminatus, Não voltes a falar comigo por favor,
Na tua idade, nem todos têm direito
A uma segunda oportunidade.

Às vezes temos que rir para não chorar.
Para sentir fome é preciso primeiro devorar.
A paz só vem depois da vitória,
Um amor sem ódio é um amor sem glória.
O meu ninho de amor, a minha Ave-do-Paraíso,
O meu bunker onde és uma flor nos jardins do Nepal,
Nas topiarias, na estufa-fria, nesse paço real.

Apenas a tempestade, no seu furor, desconhece
Que o sol brilha por trás das nuvens, sempre igual,
E as flores, quando chove perdem a cor, as Flores do Mal
Criando um mundo a preto e branco
Como o Psycho ou o Citizen Kane.
Os marcianos têm os olhos dourados,
Cor de mel e Cristo nunca existiu...

Mas, acima de tudo a redenção, a salvação, a esperança.
No entanto, aqueles apóstolos de um cristianismo não católico,
Com os seus fatos de nylon e as suas gravatas de poliéster
Jamais irão para o reino dos Céus pois Deus odeia
A falta de gosto. Pode até perdoar um pecado ou outro
Mas nunca o mau trajar; o Céu não é para labregos.

La Luna del Cacciatore, a lua cheia,
Cheia de amor, plena de terror,
Prenhe de ternura prateada ou de pranteada dor.
O vermelho parece cinzento e o amarelo branco.
A noite é uma longa paisagem sem cor
A imitação dos dias, Anjos e Amantes,
O segredo é viajar depressa,
Antes e depois da biopsia
E morrer antes ou depois da autópsia.

Quem andará aqui a ler Os Sonâmbulos?
Quem acicatou o grande combate entre
As Trompas de Eustáquio e de Falópio?
Iludir e dissimular é um pecado abjecto...
Passeio pelo chão de mármore e pelo tecto,
As paredes vermelhas inclinam-se em direcção à alcova
Que vivenda, que luxo, que lindo jardim com repuxo,
Que belo mastim, que belo jasmim, que belo palanquim,
Casanova avança de novo para o seu festim!

O manjar dos jurados, a mulher eterna,
Uma mesa ou uma cadeira sem perna.
Jane Birkin e Bryan Ferry, models and singers
Sofisticar, imaginar loucuras, associações livres de palavras...
Passar uma semana ou duas nas Ilhas Afortunadas,
O paraíso está em promoção.

Meu querido Álvaro de Campos serás tu,
Um simples eco de Walt Whitman?
Meus amigos do coração, meus queridos defuntos,
Pessoa, Stau Monteiro, Ferré, Bécaud, Gainsbourgh,
José Afonso, Vinicius, Espanca, Sophia, Baudelaire, Wilde,
Até breve...

As Asas do Desejo, a piscina aquecida,
O palacete bem mobilado, estilo inglês,
Como se costuma dizer, Hepplewhite furniture,
O basilísco, a aspidistra, o Caso Ipcress, o Aston Martin
O champanhe, o caviar, a Angústia Para o Jantar,
As topiárias, o mordomo, os cavalos,
O pólo, o râguebi, as couves e os talos,
Os afagos da mulher amada, essa vida, esse dulce farniente,
Essa heroína, essa cicuta, essa ampola dourada.

A palavra de ouro, o silêncio de prata,
Impressions du Matin, Santa Apolónia,
A picada de uma aranha que mata.
Le Vin de L’Assasin, uma colónia qualquer
Branca e solitária, um Perfume de Mulher
Lábios de fogo, olhos de gazela, coração de pedra.
A torre de marfim e os dentes de uma fera
Livres do engano de Jocasta e da tentação de Fedra,
Rosebud, rolando para sempre numa esfera.

Les silhouettes, Isabella, a forma analógica do decassílabo
Terra azul, nós somos os palhaços e os videntes, Taedium Vitae
Não eram veementes, os momos, já lacaios do destino em suas mentes.
Línguas de fogo, ventres ondulantes, grades de penumbra
Zunindo, cortando o ar, em gomos de silêncio.

Estéril terra, vazia alameda, vida oca,
Tarde caliente, la dolce vita, o Fiat topolino.
La Donna Immobile, antevendo o prazer imediato
Sem ideal nem esperança, a vida, sem o sopro divino.

Os bichos e as coisas, a inutilidade de tudo,
E sobretudo, o sobretudo, os passos sem destino pela rua.
As estrelas cintilantemente estúpidas na noite fria
A cara redonda, estéril, bronca e inexpressiva da lua
E a imagem surpreendente da tua alva mão tardia
Que já não quero agarrar, a oferta do teu corpo
Que já não ouso tocar, pois já nada desejo
Nem nada me interessa, nem nada quero.

Je t'aimai bien, tu sais?!
O automóvel branco aspergindo folhas outonais...
Esse ano os automóveis brancos estavam na moda,
E eu seria teu, para sempre.
Ainda te lembras dos Super Constellation?
Hoje sonhei que voava sobre o meu país,
Flutuava, sobre uma Europa em chamas.

Hélio Cunha

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A PEQUENA OUBLITTE
(Ascensão e Queda de um Ditador)

Nas selvas e nas florestas as plantas nascem e morrem livres mas a sua efémera existência é uma luta sem tréguas pelo espaço e pelos nutrientes num mundo onde apenas as mais fortes conseguem sobreviver.
Aquelas que conseguem crescer mais depressa e espalhar com maior rapidez as raízes lançam-se velozmente para as alturas e roubam a luz do sol e a água a todas as outras. As mais frágeis não demoram muito tempo a definhar e morrer, pois no mundo das plantas, as leis da sobrevivência são tão duras e implacáveis como no reino animal.
Há tempos, observei durante várias semanas o desenvolvimento de uma trepadeira. Ninguém pode imaginar as voltas que deu para subir pelo tronco de uma árvore. Moveu-se, no seu lento movimento vegetal, dia após dia, ondulando como uma serpente até chegar ao topo, afastando e estrangulando as oponentes mais débeis que lhe dessem o mínimo sinal de desafio.
No meu Jardim, não deixo que essa violência e essa bestialidade prevaleçam. Aqui todas as plantas são tratadas com esmerada dedicação e de igual modo. Todas são regadas, desbastadas e tratadas com desvelo, libertas dos fungos mais persistentes e dos parasitas mais agressivos.
Levei esse desejo de perfeição ao extremo, a ponto de controlar minuciosamente todos os detalhes tais como os períodos de rega, os adubos, os tempos de exposição solar, a especificidade das podas e até, através de um cálculo rigoroso e científico, a alternância dos sons e dos silêncios. Desse modo obtive flores maiores e mais perfumadas e plantas mais verdes, graciosas e aromáticas. Pétalas de coloração mais bem definida e sépalas mais bem delineadas. Pistilos mais robustos, estames mais erectos, caules mais firmes e uma maior abundância, poder de disseminação e fecundidade dos pólenes.
Consegui até a desenvolver um exemplar de uma planta miraculosa de pétalas tão transparentes que perecem feitas de água mas realidade são feitas das lágrimas do mundo pois sempre que alguém chora ela absorve a sua tristeza para que essa pessoa possa voltar a ser feliz.
Neste jardim, os raios de sol são coados por espessas frondes e formam halos descendentes que a brisa tange como uma harpa de luz.
Aqui tudo é harmonia, viço e formosura pois eu cuidei de todos esses prodígios vegetais até ao mínimo pormenor e nos últimos momentos que aqui passei comecei a notar que os próprios bichos, perante tanta perfeição, começaram por sua vez a sofrer transformações. As rãs, por exemplo, assumiram formas coloridas que vão do carmim ao rosa pálido. Começaram também a aparecer nos pardais cores mais vivas como as das aves do paraíso. As borboletas tornaram-se maiores e lindíssimas e os seus reflexos irisados refulgem à mínima variação luminosa cintilando como jóias vivas e, ao entardecer, cigarras de ouro executam suaves melodias que, por estranho que pareça, cada vez mais se assemelham a elaborados sons de violino e violoncelo.
Junto aos pequenos lagos, que por entre as arvores disseminei, ouvia o riso maravilhoso de crianças invisíveis que se juntavam ali para brincar. Muitas vezes me sentei para tentar observá-las, escondido atrás de uns arbustos para não as assustar, mas embora ouvisse o seu riso, nunca as conseguia ver.
Apenas num dia de Outono, quando começaram a cair as primeiras chuvas brandas, pude finalmente enxergar os vagos contornos das silhuetas dessas crianças definidos pela auréola vaporosa produzida pelo contacto das gotas de água com os seus inocentes e invisíveis corpos nus. Pude então ver que tinham pequenas asas plumosas como as das avezinhas e nesse momento percebi que eram anjos.
Mas, aquilo que eu verdadeiramente admirava era uma estátua de indescritível beleza, de uma mulher, que se situava no centro geométrico do Jardim. Era esculpida num mármore lustroso e ebúrneo que se tornava progressivamente translúcido conforme o sol rodava na linha do horizonte e à tardinha esse pétreo e mágico material começava a brilhar dimanando uma pálida luz interior, como se o sol colocasse nesse rosto de uma beleza indescritível, os seus derradeiros e mais dourados raios.
Passava horas a fio a contemplar essa imagem e algumas vezes notei que parecia sorrir para mim como se estivesse viva. Levava-lhe sempre uma flor das mais belas e sentia que, a cada dia que passava ela parecia estar ainda mais viva, como se estivesse a sofrer uma metamorfose, como se fosse uma crisálida a transformar-se em insecto perfeito, como se fosse o corpo de alguém que, flutuando numa doce catalepsia, aguardasse um despertar há muito desejado.
Um dia o seu rosto estremeceu e os seus lábios moveram-se lentamente para pronunciar baixinho mas em sílabas de fogo, a palavra amor.


Agora, neste negro local onde me encontro chego a duvidar da existência desse universo belo e diáfano e a suspeitar que tudo isso não passou de um sonho, uma ilusão, uma quimera.
Estou mergulhado em total escuridão. Esta cela minúscula não tem qualquer janela ou porta e tão-pouco existe qualquer tipo de iluminação. Nem as minhas próprias mãos consigo ver e isso produz a horrível sensação que eu próprio deixei de existir. Sinto-me como um gafanhoto que se assustou e, ao saltar precipitadamente caiu num poço maligno e sombrio e é como se toda a escuridão do universo estivesse aqui encarcerada, nesta pequena cela, junto a mim.
Toda a vida me limitei a cuidar do Jardim e a amar e estimar as plantas e os bichos e, por último, amava mais do que todas as coisas do mundo aquela estátua que lentamente se estava a transformar numa deslumbrante mulher.
Já pensei que tudo isto poderia ser um castigo, por causa de todas as plantas daninhas que destruí para que as plantas boas medrassem, mas isso parece-me tão infantil e absurdo que pus de parte essa ideia.
Não desisto de tactear as paredes em busca de qualquer greta ou união entre as lajes, e continuo a apalpar o chão em busca de um alçapão por onde possa escapar a esta ignomínia encontrando nesse solo imundo apenas dejectos, larvas e infames sanguessugas.
Desconheço o motivo pelo qual vim para aqui degredado e os meus passos arrastam-se, num constante vai e vem pelo pavimento nauseabundo, como os movimentos demenciais e repetitivos de uma fera enjaulada enquanto a minha cabeça vai batendo nas estalactites viscosas, quebradiças e gotejantes que pendem do tecto desta atarracada prisão.
Gostaria de por termo a tanto sofrimento mas ainda não deixei que a morte me levasse pois tenho a certeza que se eu expirar este mal espalhar-se-á como uma infecção cobrindo de escuridão à terra inteira.

Hélio Cunha

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O MECENAS

Famintos e esqueléticos pintores,
Andam de um lado para o outro,
Na procura de um pincel
Tamanho grande, onde o
Ás de ouros sente horrores,
Sobre a tinta, a tela e o monstro,
Tramando o mecenas de cordel,
Inventor da história, do
Cachorro quente que não o largava e
Onde os artistas morrem de fome.

Victor Lages

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